Museu Paranaense se transforma em museu-ateliê para indígenas contemporâneos

No ensaio de abertura do livro “Sobre a Fotografia”, a ensaísta e crítica de arte norte-americana Susan Sontag levanta a hipótese de que as fotografias ampliam as ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que existe (ou não) no direito de observar. Segundo ela, constituem uma ética do ver. Para Sontag, o que está escrito sobre uma pessoa ou um fato é, declaradamente, uma interpretação.


E um acervo audiovisual composto por mais de mil objetos produzidos em diferentes épocas que buscavam representar o cotidiano dos povos indígenas do Paraná? Um acervo que foi constituído sob a lógica colonial ao longo de muitas décadas e que esteve sob a perspectiva e cuidados de pessoas formadas pelo pensamento eurocêntrico – cientistas, antropólogos, historiadores, museólogos? Quais são os impactos dessas imagens para a sociedade ocidental? Quais são os impactos dessas imagens para os povos indígenas retratados?  

Questões de revisão historiográfica e ética sobre as imagens têm sido levantadas pela atual gestão do Museu Paranaense (Mupa), com a intenção de promover uma reflexão decolonial sobre o seu próprio acervo. Essas ações devem definir os caminhos que o museu deseja trilhar nos próximos anos.


O pensamento decolonial é um movimento crítico que busca reverter as lógicas de dominação intelectual ou cultural de países do hemisfério norte (especialmente europeus) sobre países colonizados, como os latinoamericanos.Como um dos passos iniciais dessa tarefa, o museu convidou os artistas indígenas contemporâneos Denilson Baniwa e Gustavo Caboco para encabeçar o projeto chamado Retomada da Imagem. Os convidados mergulham juntos nesse conjunto de acervos produzidos por não-indígenas para encontrar as armadilhas, construções e também memórias ali presentes.

MUPA se transforma em museu-ateliê para artistas indígenas contemporâneos - Foto: Kraw Penas/SECC

O contato dos artistas com estes materiais deve gerar criações artísticas que reafirmam novas narrativas, agora sob a perspectiva dos povos retratados.


Gustavo Caboco, artista indígena da etnia Wapichana nascido em Curitiba, acredita que a arte é uma ferramenta que possibilita recriar narrativas. “Ideias de exotização, tipificações e critérios que funcionam ou funcionaram no campo acadêmico podem revelar, para nós, ideias de racismo na imagem”, afirma.


O artista diz que tende a pensar na figura de uma gaveta empoeirada que eles estão acessando pela primeira vez. “A gente sabe que algumas das pessoas que estão registradas e muitas vezes não tem nem indicação de seus nomes podem ser parentes. É como se alguém tivesse o álbum de fotografia da sua família que você nunca teve acesso”, destaca. ETAPAS – O projeto de longa duração se divide em três etapas. A etapa I, chamada Primeiros Encontros, aconteceu entre agosto e outubro de 2021 e foi o momento de imersão dos artistas no conjunto de imagens e vídeos do acervo do museu. 


Na segunda etapa, que começou dia 11 de novembro e vai até esta terça-feira (16), o Mupa se transforma em museu-ateliê, no qual Baniwa e Caboco fazem uma pequena residência artística e contam com a presença de cinco outros indígenas convidados como interlocutores: Camila dos Santos (Kanhgág), Indiamara Paraná (Xetá), Juliana Kerexu (Mbyá-Guarani), Ricardo Werá (Mbyá-Guarani) e Elida Yry (Mbyá-Guarani).


O público visitante pode acompanhar de perto os processos criativos e a produção de trabalhos realizados dentro do Museu Paranaense. O grupo vai imergir em criações que devem compor a terceira e última etapa do projeto: uma publicação online e multimidiática.  


Nascido em Mariuá, Amazonas, Denilson Baniwa conta que vem de uma região que foi bastante fotografada por diversas pessoas: antropólogos, historiadores e até fotógrafos comerciais. “É desse lugar, de ser retratado, ter minha imagem capturada, que eu me coloco nesse projeto”, afirma.


Baniwa destaca que a autonomia sobre tecnologias e ferramentas diversas, como a própria câmera, reverte papéis e protagonismos, estabelecendo agora novas relações e negociações narrativas.


A publicação do projeto Retomada da Imagem está prevista para o primeiro semestre de 2022 e deve contar com a diversidade dos pensamentos indígenas de diferentes matizes culturais e compreensões de mundos. 


SOBRE OS ARTISTAS – Denilson Baniwa nasceu em Mariuá, no Rio Negro, Amazonas. Sua trajetória como artista teve início ainda na infância, a partir das referências culturais de seu povo. Na juventude, ele se engajou na luta pelos direitos dos povos originários e transitou pelo universo não-indígena, apreendendo referenciais que fortaleceriam sua resistência. É um artista antropófago, pois apropria-se de linguagens ocidentais para descolonizá-las em sua obra. Em sua trajetória contemporânea, consolida-se como uma referência, rompendo paradigmas e abrindo caminhos ao protagonismo dos indígenas no território nacional.  


Gustavo Caboco nasceu na capital paranaense e cresceu em um ambiente urbano, mas cercado pelas histórias de sua mãe, Lucilene, uma Wapichana da terra indígena Canauanim (município de Cantá, Boa Vista, Roraima). Em 2001, o artista e sua mãe realizaram juntos um retorno às origens, momento em que Caboco foi apresentado à sua avó materna e aos seus familiares indígenas, que traçaram seu destino como artista. Ele encontrou no desenho, no bordado, no som e na escuta formas de dialogar com as atualidades e identidades indígenas.


Serviço


Retomada da Imagem

Projeto de longa duração que revisita o acervo audiovisual sobre povos indígenas do Museu Paranaense a partir da perspectiva e da arte de dois artistas indígenas, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco

O público poderá acompanhar de perto a etapa II do projeto, chamada Museu-Ateliê, entre os dias 11 e 16 de novembro de 2021, quando os artistas produzirão trabalhos em residência no MUPA


Museu Paranaense

  • Rua Kellers, 289, São Francisco – Curitiba
  • Aberto de terça a domingo, das 10h às 17h30 
  • Entrada gratuita


Fonte: AEN

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