Pediatras alertam para possível relação do coronavírus com casos de inflamação multiorgânica grave em crianças

Ministro britânico da Saúde diz que vários menores morreram por esta causa, mas especialistas pedem calma e observam que são quadros clínicos muito pouco frequentes
FOTO: JAIME VILLANUEVA
Crianças nas ruas de Madri, no domingo passado, primeiro dia em que as crianças foram autorizadas a deixar o confinamento doméstico

JESSICA MOUZO| RAFA DE MIGUEL|MANUEL JABOIS / EL PAÍS
Barcelona / Londres / Madri - 28 ABR 2020 - 15:52 BRT

Pediatras de vários países europeus alertaram para o surgimento de casos de crianças com um quadro clínico de inflamação multiorgânica grave que poderia estar relacionado com o coronavírus. Os primeiros a dar o alerta foram os britânicos e, conforme informou nesta terça-feira o ministro da Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, causou a morte de vários menores que não tinham condições patológicas subjacentes. Dor abdominal e outros sintomas gastrointestinais como diarreia e/ou vômitos “podem evoluir em poucas horas para um choque, com taquicardia e hipotensão, inclusive na ausência de febre”, segundo o alerta distribuído nesta segunda-feira pela Associação Espanhola de Pediatria (AEP), que cita casos no Reino Unido, Itália, França e Bélgica. Estes sintomas “costumam ser acompanhados de febre, escamação da pele e injeção conjuntival”, compatíveis com a chamada doença de Kawasaki [uma inflamação dos vasos sanguíneos] e uma síndrome de choque tóxico. Os especialistas consultados apontam que, na Espanha, foram descritos casos, pelo menos, nas províncias de Madri, Málaga e Barcelona, mas pedem calma: trata-se de um quadro clínico muito pouco frequente.

“São tão poucos os casos que é apenas uma suspeita que tenham relação com a covid-19, mas tudo coincidiu no tempo. Todas estas manifestações têm um denominador comum: uma inflamação dos vasos sanguíneos. E não é de estranhar que a covid-19, com capacidade de provocar inflamações, possa provocar isto nas crianças”, avalia Carlos Rodrigo, diretor clínico de Pediatria do Hospital Germans Trias i Pujol, em Badalona, cidade vizinha a Barcelona. O pediatra, que já comandou o comitê de crise em outros alertas sanitários, como a crise do enterovírus na Catalunha em 2016, que provocou dano neurológico em dezenas de crianças, pede calma e cautela. “Felizmente, estamos preparados. Conhecemos estes quadros clínicos e é preciso tratá-los como o estávamos fazendo, não necessitamos de tratamentos novos. E como não estivemos submetidos a pressão durante a crise sanitária, porque os sintomas em crianças eram leves, temos disponível toda a capacidade de meios e UTI do sistema sanitário para atendê-las. Mas são quadros clínicos muito pouco frequentes”, reitera. O alerta da Associação Espanhola de Pediatria (AEP) é mais “preventivo, para estar atentos”, salienta. “É prioritário reconhecer estes quadros para encaminhar urgentemente estes pacientes a um centro hospitalar”, sustenta a AEP em sua mensagem aos pediatras.

“É uma nova doença que acreditamos que pode ser causada pelo coronavírus, não estamos 100% seguros, porque alguns dos pacientes deram positivo nos testes, então estamos investigando, mas é algo que nos preocupa”, afirmou Hancock nesta terça-feira numa entrevista à LBC Radio. “É raro, embora seja muito significativo para as crianças que a têm; o número de casos é pequeno”, acrescentou. Médicos no norte da Itália relataram um alto número de crianças menores de nove anos com o que parecem ser casos graves da doença de Kawasaki, mais comum na Ásia, segundo a Reuters. Esta enfermidade é uma vasculite (inflamação dos vasos sanguíneos ou linfáticos) que tende a afetar crianças de 1 a 8 anos. Caracteriza-se por febre prolongada, conjuntivite ou inflamação das mucosas. A Associação Espanhola de Pediatria recomenda, ante a aparição de alguns destes sintomas “ter um alto índice de suspeita, monitorar a frequência cardíaca e a tensão arterial e avaliar o encaminhamento urgente a um hospital próximo”.

“Trata-se de uma situação rara, mas considero completamente plausível que tenha sido causada pelo vírus, ao menos em alguns casos. Sabemos que nos adultos os problemas graves surgem quando começa um processo inflamatório, e o que observamos nas crianças é um claro processo inflamatório, embora diferente", explicou o professor Whitty. Por ter surgido ao mesmo tempo que o coronavírus, a possibilidade de que exista uma relação ―embora não seja nem de longe definitiva― é certamente plausível".

Rodrigo observa que a síndrome de Kawasaki e o choque tóxico têm semelhanças com a covid-19. “A síndrome de Kawasaki também é uma resposta inflamatória exageradíssima, com lesões na pele e na boca e inflamação nos gânglios. A covid-19 costuma afetar mais os pulmões, e esta síndrome gera mais problemas no coração pela inflamação das vias coronárias e pode provocar enfartes. Mas, no nosso meio, se for detectada cedo ―e daí a alerta da AEP― a mortalidade é muito inferior a 1%”, diz o pediatra. O choque tóxico é provocado pelas toxinas desprendidas por certas bactérias. “Os vasos sanguíneos perdem sua capacidade de fazer os movimentos para que o sangue circule, e este é incapaz de chegar ao seu destino. A mortalidade é inferior a 10%”, aponta.

Sylvia Belda, médica da UTI pediátrica do Hospital 12 de Outubro, em Madri, faz coro ao apelo por calma. “Muitas das crianças que dão entrada nas UTIs nas semanas de pandemia tinham patologia prévia, e a covid-19 não era necessariamente a razão de sua internação. Tivemos também crianças que foram internadas por outra coisa e tinham covid positivo que não lhes causava sintomas. A mensagem de que as crianças são pouco afetadas continua vigente. O que vimos nas últimas semanas é que há uma alta de algumas enfermidades que são muito pouco frequentes em crianças. E isso é chamativo.” “São pequenos em número”, continua, “mas foram vistos acima do normal nestas semanas, e estão sendo vistos em lugares onde a curva do coronavírus está baixando. Não é alarmante pelo número total de afetados, e sim pelo acúmulo em um espaço de tempo curto, mas primeiro temos que descrevê-lo bem e descobrir se tem relação real com a pandemia. Estes casos estão sendo reunidos e há redes nacionais e internacionais para seu estudo.”

Desde o início da crise, na Espanha somente 48 pessoas entre 0 e 19 anos foram internadas em unidades de terapia intensiva por causa de uma infecção oculta por covid-19,de acordo com dados do Ministério da Saúde. Trinta e uma crianças entre 0 e 9 anos e 17 entre 10 e 19 anos. Segundo relatos do ministério, no momento não parece haver um aumento evidente, apenas um acúmulo progressivo de casos.

Os médicos de família do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês) receberam uma instrução do Conselho de Diretores Médicos do país pedindo que prestem atenção especial a esses pacientes. "Existe uma preocupação crescente de que esteja surgindo entre as crianças do Reino Unido uma síndrome inflamatória relacionada à covid-19", diz a circular, "ou que haja algum outro patógeno infeccioso, ainda não identificado, associado a esses casos". de acordo com a revista médica especializada Health Service Journal (HSJ).

“Foi detectado tanto em crianças que tinham dado positivo no teste de PCR como naquelas que deram negativo. Havia também traços sorológicos de uma possível infecção prévia por SARS-CoV-2”, especifica a nota que circulou nos consultórios. Isto é relevante porque, de acordo com especialistas consultados por este jornal, na Espanha, Itália, França e Reino Unido surgiram casos de crianças com alteração hemodinâmica após terem passado ou estarem passando por uma infecção por covid-19. Estes quadros não são manifestações diretas da infecção, mas "provavelmente reações do sistema imunológico que provocam uma resposta inflamatória sem que seja o vírus que esteja atacando diretamente o organismo”.

A AEP pediu calma, especialmente entre os pais: “É um quadro muito raro. Graças ao modelo pediátrico espanhol, pelo qual os pediatras da atenção básica são o primeiro contato das crianças com o serviço de saúde, isso nos permite agir logo nos primeiros sintomas", ressalvou. Os agentes infecciosos que causam esses quadros clínicos são diversos e, de qualquer forma, existe um tratamento estabelecido para combatê-los. “Se uma criança tem vômito e diarréia, precisa ser avaliada por um médico, mas não por causa da covid-19, sempre. Este já é um motivo de consulta pediátrica em si. Este alerta era para pediatras. Os pais precisam fazer o mesmo que já vinham fazendo”, disse Fernando Moraga-Llop, pediatra e vice-presidente da Sociedade Espanhola de Vacinação.

Os especialistas insistem em que os sintomas clínicos que a covid-19 causa em crianças são muito leves. "É aconselhável ser alertado pelos médicos, mas a doença ainda é muito leve nas crianças. Geralmente pára na primeira fase, com uma síndrome pseudogripal. Muito poucos casos evoluem para pneumonia e, excepcionalmente, passam a sofrer danos sistêmicos ", conclui Moraga-Llop.

Outros síntomas
Não é a única manifestação do coronavírus que não está relacionada com as típicas de uma pneumonia. A Academia Espanhola de Dermatologia observou há duas semanas que urticária e outras lesões cutâneas ―em crianças, mas também em adultos― podem estar associadas ao vírus, relata Emilio de Benito. E a Sociedade Espanhola de Neurologia alertou em 20 de abril que um em cada três pacientes com covid-19 apresentava problemas neurológicos como convulsões epilépticas, AVCs ou síndrome de confusão.

Todas essas evidências, que mudam à medida que o vírus e seus efeitos se tornam mais conhecidos, já fizeram com que o Centro de Controle de Doenças dos EUA incluísse, por exemplo, a dor muscular, dor de garganta e calafrios entre os sintomas que podem indicar uma infecção por coronavírus.

Sobre o assunto, o British Medical Journal alertou, em um editorial de 17 de abril, que essas manifestações da doença precisam ser levadas em consideração para que os afetados tenham o cuidado de não contagiar outros, algo especialmente importante num momento em que se começava a discutir o fim do confinamento.

©1999 | 2024 Jornal de Curitiba Network BrasilI ™
Uma publicação da Editora MR. Direitos reservados.